sexta-feira, 13 de junho de 2008

Os doutores daquele tempo

É agradável lembrar os tempos dos doutores, que mal conheciam uma letra, mas que de saber era com eles!

Todos os castiços desta terra, eram tratados por doutor: o dr. Pestana, dr. Casinhas, dr.Sabido,dr. Teotónio, dr. Manhoso, dr. Binagreiro, dr. Bira milho, dr. Roquete, dr.Mirones , dr. Manicambone,etc.,etc..

Perante tantos doutores iletrados, o que mais dava gozo verificar era a escolha das alcunhas para cada um. Encaixavam todas às mil maravilhas, no estilo e no tipo de cada doutor, como que mostrando de forma evidente a sua “especialidade”!

Convém ter em conta que estes doutores, faziam parte do grupo dos amigos do “berde”, cuja reunião magna era quase obrigatória aos domingos da parte de tarde, na taberna do Martinho, onde hoje se situa a pastelaria Belinha.

Assim, o dr. Pestana, caracterizava-se por ter umas pestanas e umas sobrancelhas dignas de respeito! Davam de tal modo nas vistas, que o tornavam inconfundível;

O dr. Casinhas, homem de baixa estatura, de ditos sempre bem-humorados, só olhar para ele já fazia rir! Porquê o título? Porque no meio de tantas piadas, no final do domingo no regresso a casa, a despedida não variava: -Bem, vou até casinha!

Dr. Teotónio, homem de conversa em ritmo lento, suave e sempre muito seguro naquilo que dizia, raramente falhava, porque pouco ou nada fazia! Para ele, o trabalho não azedava! Desconheço a origem do título.
Num lindo domingo de Páscoa, depois de receber a visita Pascal em sua casa, com os olhos banhados em água, dizia: -Quando ELE entra na minha casa, sou o homem mais feliz do mundo!
Uns parentes seus, não abriam a porta para receber a cruz, por serem jeovás. Crítico por entender que isso não era bem, dizia cheio de convicção: Esses “obás” estão todos perdidos!

Dr. Manhoso, homem de poucas falas, mãos atrás das costas, sempre atento às conversas dos outros, ouvia muito, mas falava muito pouco. Estilo que lhe conquistou o título.

Dr. Binagreiro, nada escrupuloso nem exigente com a qualidade da pinga. O que queria era enfrascar!

–Olha lá: queres branco ou tinto! Sempre a mesma resposta: - Muito!

Um dia assisti a uma tratantada que lhe fizeram. Quando respondeu - muito, deram-lhe um grande copo de vinho azedo, que tombou quase de um folgo, mas o amargo de boca com que ficou, deixou-o irritadíssimo, em contraste com a gargalhada dos presentes.

Dr. Bira Milho, o grande arquitecto do arco que era construído para as festas da Senhora do Rosário, no segundo Domingo de Maio de cada ano, em São Julião de Passos.

Qualquer coisa de extraordinário, quer pela sua grandeza, - chegava a superar os trinta metros, quer pelos motivos alusivos à festa, que tanto embelezavam o arco!

Construído a partir de enormes varas de eucalipto, colocadas encima de fortes cavaletes ao lado da estrada, desde a parede do adro até à casa do Sr. Justino, cravadas umas às outras com grandes pregos! Depois de construído, era todo ele coberto com festão, ou seja, com tiras cortadas de papel de seda, de várias cores! Era uma autêntica obra de arte! Permanecia erguido à porta da igreja, em exposição, durante todo o mês de Maio!

Espectáculo digno de ser visto, era assistir ao levantamento do arco! Mobilizava dezenas de pessoas, grandes escadas das vindimas, e enormes cordas, que o ajudavam a levantar gradualmente, com equilíbrio, numa apreciável conjugação de forças. Tudo sob a orientação e comando do “bira milho”.

“Trinta padres e quarenta músicos”, era uma expressão muito usada por ele, para significar um grande aglomerado de gente! “Bira milho”, era um incitamento que queria dizer: siga p’rá frente!

Dr. Roquete, o homem sabido. Para tudo ele pensava ter a opinião certa!

Dr.Mirones, observador atento, tudo queria ver e saber! Ainda hoje há muitos!

Dr. Manicambone, o catedrático e chefe de todos os doutores. Era ele quem alcunhava todos os outros!

Para se poder definir, retratar e contar as peripécias deste homem, não chegaria um livro qualquer, seria necessária uma biblioteca!

“A cão belho não chames buxinho”! Expressão que usava, para dizer: não queiras ensinar quem sabe mais.

"Dizem os sábios da terra, que vida eterna não há; com que cara ficarão, quando eles chegarem lá!"

Gostava de falar, à sua maneira, da segunda grande guerra e dos Generais que nela se notabilizaram: Von Papem, Rodolfo Esse, Goring, Hitler! Vibrava ao pronunciar estes nomes. De seguida estendia um relatório enorme, impossível de decorar!

Sobre os Ingleses, dizia: -“Piratas de unha comprida, velha mãe dos rapinantes, que roubaram nossas naus…….

Sobre a ida do homem à lua, ninguém o convencia -“nem pensar nisso, nunca isso seria possível”!

Homem muito aberto à conversa, expunha-se por isso, às vezes, à chacota.

Um dia, alguém, sem que ele desse pela conta, grava uma larga conversa, sobre os temas acima referidos. Depois de bem explorada pelo entrevistador, este roda o gravador e põe com bastante volume a reprodução da entrevista! Ao ouvir tantos disparates, pergunta ele: -“quem é esse filho da pousa?” -É você, responde o interlocutor! Logo se pôs nas ondas!

Contava ele que os filhos o convidaram para ir passar uns tempos à França onde se encontravam emigrados. Lá foi, mas o não compreender os franceses, deixava-o muito intrigado! -Eu sei lá, dizia ele, se me estão a tratar mal? Desanimado, pede aos filhos para, sem demora, voltar para Portugal, "porque não entendo estes gajos"!

Contava que um dia, desanimado, seguia lá por uma viela, quando lá por cima ouve um cão a ganir: Caim. Caim, Caim…, contente exclama: "até que enfim, que ouço falar português"!

Manuel Rodrigues/Maio 2008

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